Biface acheulense de há 200 000 anos, encontrado em Madrid (Espanha)Primeiro biface publicado na história da Arqueologia, por John Frere (1800)
Um biface é um instrumento lítico pré-histórico que caracteriza, sobretudo, o período Acheulense, embora tenha uma cronologia muito mais longa, tendo-se também datado no Paleolítico Médio e ainda com posterioridade. O seu nome vem de que o modelo arquetípico seria uma peça de talhe, geralmente, bifacial. A morfologia é amendoada e tendente à simetria segundo um eixo longitudinal e segundo um plano de esmagamento. Os bifaces mais comuns têm a base arredondada e terminam em ponta.
Os bifaces foram as primeiras ferramentas pré-históricas reconhecidas como tais: em 1800 aparece a primeira representação de um biface, numa publicação inglesa de John Frere.[1] Até então era-lhes atribuída uma origem natural e supersticiosa (eram chamadas de "pedras do raio"—ou ceráunias—, porque a tradição popular sustinha serem formadas no interior da terra ao cair um raio, e que depois saíam à superfície; de fato, ainda são usadas em certas regiões rurais como amuletos contra as tormentas).
A palavra biface foi utilizada pela primeira vez em 1920 pelo antiquário francês André Vayson de Pradenne,[2] convivendo este termo com a expressão "machado de mão" ("coup de poing"), proposta por Gabriel de Mortillet muito tempo antes,[3] podendo dizer-se que, somente devido à autoridade científica de François Bordes e Lionel Balout, impôs-se o vocábulo definitivo.[4]
Porém, dado que estas primeiras definições do biface eram baseadas somente em "peças ideais" (ou "clássicas"), de talhe perfeito, durante anos houve uma noção encaixotada demais sobre este objeto. Com o tempo, a aprofundação no conhecimento deste tipo lítico distinguiu-se entre um biface propriamente dito e uma peça lítica bifacial; de fato, na atualidade, um biface nem sempre é uma peça bifacial, e há múltiplas peças bifaciais que não são em absoluto bifaces.[5] Alguns autores preferem reservar o termo "biface" para as peças antigas, anteriores ao interestadial Würm II-III",[6] embora certos objetos posteriores pudessem "excepcionalmente" ser denominados bifaces.[7]
Também não deve ser identificado biface com machado; infelizmente o vocábulo machado foi, durante muito tempo, uma palavra "curinga" em tipologia lítica para uma grande diversidade de instrumentos líticos; sobretudo numa época na que se ignorava a verdadeira utilidade de muitos deles. No caso concreto do biface paleolítico, "machado" é um termo inadequado. Já foi indicado na década de 1960 que esses objetos não são "machados".[8] Argumento corroborado por posteriores pesquisas, sobretudo sobre as marcas de uso.[9]
↑FRERE, John (1800). «Account of Flint Weapons Discovered at Hoxne in Suffolk». Archeologia, vol. 13. [S.l.]: Londres. ISBNPáginas 204-205 Verifique |isbn= (ajuda)
↑VAYSON DE PRADENNE, André (1920). «A plus ancenne indústrie de Saint-Acheul». L'Anthropologie, tomo XXX. [S.l.]: Publications Elsevier, Paris. ISSN0003-5521. Páginas 441-496.
↑Gabriel de Mortillet (1883). Le Préhistorique. Antiquité de l'homme. [S.l.]: Bibliothéque des Sciences Contemporaines. Paris. ISBNPágina 148 Verifique |isbn= (ajuda)
↑Em inglês mantém-se a expressão hand axe ("machado de mão") como equivalente do português "biface" e do castelhano "biface" ou bifaz, enquanto a palavra biface é aplicada a qualquer peça talhada pelas duas caras com debitagens, incluídos bifaces (ANDEFSKY, William Jr. (2005). «Biface analysis». Lithics. A Macroscopic Approaches to Analysis. [S.l.]: Cambridge University Press. ISBN13-978-0-521-61500-6 Verifique |isbn= (ajuda). pp. 177-199). Em alemão é usado o termo faustkeil, que poderia ser traduzido como "machado de mão", embora em senso estrito signifique "cunha de punho". No mesmo sentido é o termo holandêsvuistbijl, "machado de punho", e o mesmo ocorre com outras línguas.
↑A presença, quer de bifaces, quer de peças bifaciais, não é exclusiva do Paleolítico Inferior do Velho Mundo, pois continuam aparecendo em todo o Mundo e em épocas muito diversas da Pré-História, sem isso implicar necessariamente cronologias antigas. De fato, a tipologia lítica há tempo que deixou de ser uma referência cronológica fiável. Como exemplos, os "quasi-bifaces" que algumas vezes aparecem em níveis Gravetenses, Solutreanos e Magdalenianos da zona franco-espanhola, as toscas peças bifaciais do "Lumpembense" africano (9000 a.C) ou as grandes ferramentas piriformes descobertas nas cercanias de Sagua la Grande, Cuba ((em castelhano)Bifaces em Sagua, Cuba). O certo é que Sagua la Grande é um caso claro de uma noção tergiversada devida, talvez, a uma má interpretação do conceito ou, talvez, pela contaminação linguística anglo-saxã: a mesma palavra "biface" não é o mesmo em inglês que em francês, ou em espanhol (biface/bifaz), o qual origina mal-entendidos. Tudo o Neolítico e o Calcolítico acostuma ir acompanhado por instrumentos de desmato talhados bifacialmente —muito similares aos bifaces—, às vezes chamados Heminettes ou, simplesmente, enxadas (um substituto mais econômico dos machados polimentados). Os povos aborigíneos atuais do rio Sepic, na Nova Guiné seguem usando peças virtualmente idênticas a bifaces para limpar o mato.
↑BENITO DEL REY, Luis (1982). «Aportación a un estudio tecnomorfológico del biface». Studia Zamorensia. III (Edições da Universidade de Salamanca, Colegio Universitario de Zamora). ISSN 0211-1837. pp. 305-323.
↑Benito del Rey, op. cit., 1982, página 305 e nota 1
↑BALOUT, Lionel (1967). «Procédés d'analyse questions de terminologie dans l'étude des ensembles industriels du Paléolithique inférieur en Afrique du nord». Background to Evolution in Africa. The University of Chicago Press (Editado por Walter W. Bishop e J. Desmond Clark). pp. 701 -735.